chamada blog

Missão Haiti (Parte 4)

missaohaiti

 

Apesar de tudo, vi muitas coisas boas no Haiti. Vi um povo amoroso com os que lhes dão atenção, muita gente trabalhadora que crê na força do bem e no poder de Deus. Vi muita expressão de fé genuína, gestos de grande amor ao próximo, de alegria no servir. Vi um edificante respeito pelas coisas sagradas, como o cuidado de vestir a melhor roupa, apresentar-se limpo, bem penteado ao ir para as celebrações, sejam na Igreja, sejam ao relento. Tal respeito se vê no silêncio dentro dos templos, na posição de veneração ao entrarem as equipes de celebração no recinto, na preparação dos cantos – às vezes a duas, três ou quatro vozes - nos instrumentos de percussão sem exageros e nem excessos, na delicadeza ao estender as mãos para receber a Sagrada Comunhão, e, por fim, nas danças inocentes após certas celebrações festivas.

Apesar de lixo e esgoto a céu aberto em muitas ruas, não vi muita gente que aparentasse descuido com a higiene do corpo. Apesar do calor de 37º, não vi nenhuma mulher com roupa muito curta, nem de shorts, nem de bermuda, nem com vestido decotado, nem com o ventre descoberto, nem descalça. Não vi nenhum homem de camiseta cavada, nem de bermuda que não fosse bem abaixo dos joelhos, ninguém fumando nas ruas. Um colega me disse que, depois de muito observar, encontrou uma ou outra pessoa que se apresentava com cigarros em público.

Vi muitas obras de caridade e de promoção humana dirigidas por religiosos vindos de várias partes do mundo, vivendo na alegria de servir, se misturando ao povo simples, vivendo com a mesma simplicidade daquela boa gente. Vi radicalidade neste particular, como os jovens da Missão Belém, brasileiros ali presentes desde o terremoto de 2010, que moram em casas semelhantes às dos pobres mais pobres, ou seja, em barracos feitos de material reciclável, cobertos de lona de plástico, dormindo no chão, usando banheiros precários. Move-os a radicalidade do evangelho, a imagem de Cristo que, um dia, disse: “As raposas têm suas tocas e as aves do céu têm seus ninhos, mas o Filho do homem não tem onde repousar a cabeça” (Mt 8,20). Vivem o despojamento total para serem solidários em tudo ao irmão que sofre.

Vi os Frades da “Associação e Fraternidade de São Francisco na Providência de Deus” - obra brasileira nascida em São José do Rio Preto -SP em 1987 - se desdobrarem em serviços, da manhã à noite, para atender, gratuitamente, pessoas desnutridas, gestantes, gente com problemas dentários, aidéticos, doentes de todo o tipo; e faziam isto com tanta naturalidade, satisfação e espírito religioso que não pareciam estar trabalhando, mas apenas cuidando de pessoas de sua família. Vi-os rezando com muita profundidade, celebrando a Eucaristia dentro de um container transformado em capela, desfiando as contas do Rosário com grande devoção, sozinhos ou com jovens ou com o povo em geral, andando pelo pátio da Fraternidade. Vi que vivem em habitações muito simples, como a maioria do povo haitiano vive, acolhem centenas de crianças todos os dias para a nutrição de manhã e à tarde, visitam casas, ensinam como tratar a água para beber, uma vez que toda a água no Haiti é contaminada. Aqueles três franciscanos, sempre revestidos de seu hábito marrom, jovens, com formação universitária, eram para mim a realização bem-acabada da palavra de Cristo: “Tudo o que fizerdes ao menor dos meus irmãos é a mim que estareis fazendo” (Mt 25, 40).

Apesar da desolação de ver a antiga catedral em ruínas resultantes do terremoto de 2010, vi muita gente de nossa religião e de outras, orando, confiantemente, todos os dias e em todas as horas, ao redor do grande crucifixo que ficou intacto no meio de centenas de prédios que foram destruídos por aquele sismo, e vi outras pessoas, em contínua oração, diante da gruta de Nossa Senhora de Lourdes que também não sofreu danos, bem em frente ao local onde Dra. Zilda Arns faleceu.

Vi sinais de organizações não governamentais que estiveram por lá para socorrer a população após o terremoto de 2010 e depois do furacão de 4 de outubro de 2016 e que já foram embora, e outras ONGs que continuam lá dando assistência e amparo aos dizimados.

Vi uma natureza muito bonita, sobretudo nas montanhas, fazendo jus ao nome do País, pois o vocábulo “Haiti” significa, em língua indígena, “altas-montanhas”.

Vi afinal, um grande apelo de Deus em meu coração e nos olhos de todos os que comigo foram em missão, para que façamos o que pudermos, a fim de minimizar o estado de pobreza e más condições de vida dos que lá vivem, pois são nossos irmãos.

 

Dom Gil Antônio Moreira
Arcebispo Metropolitano de Juiz de Fora

Missão Haiti (Parte 3)

Cortou-me o coração! Certo dia, uma criança de 10 anos se aproximou com os olhos tristes, voz muito baixa, e segredou-me em língua crioula: “eu queria ir à escola”. Perguntei-lhe: “você nunca esteve em uma escola?” A resposta negativa daquele pequeno afrodescendente tinha fundamento. Para ir à escola da rede pública no Haiti, os pais têm que gastar ao menos para uniforme e material escolar que não são baratos. A maioria das crianças fica sem instrução formal e pode continuar analfabeta por toda a vida. O índice de analfabetismo naquele País é alto. Embora dados oficias dão a cifra de cerca de 40%, o que já seria muito, sabe-se que o número é bem maior. Em algumas regiões, as pessoas que não sabem ler nem escrever somam além da metade da população. Das crianças que entram para a escola, somente 30% chegam ao fim do curso primário. É comum ver grupos de jovens com maioria sem nenhuma escolaridade. Salvam a situação as obras da Igreja que, pelo trabalho missionário de padres ou freiras, recolhem o maior número de crianças que podem, mas não conseguem atingir a todas. As escolas públicas não chegam a 10%, sendo 90% mantidas pelas missões Católicas e algumas protestantes das Igrejas históricas.

Na tarde do dia 20 de julho, encontramos a Missão da CRB (Conferência dos Religiosos do Brasil), onde vivem seis Religiosas, uma de cada Congregação, que ali estão para ensinar trabalhos manuais, educação artística, com efeitos benéficos para a alfabetização, educação e cultura, e oferecer medicina alternativa, além da formação catequética para crianças e adultos. Fomos recebidos com graciosa apresentação de cantos e danças das crianças da Infância Missionária.

Duas outras visitas marcaram nosso itinerário pelo Haiti. Na manhã de sexta-feira, dia 21, estivemos, em grupo, na Nunciatura Apostólica, onde encontramos Dom Martin Eugène Nugent, atual representante do Papa no País, um irlandês amável e acolhedor. Deu-nos oportunidade de conhecer alguns aspectos da Igreja nas duas únicas Províncias Eclesiásticas, com as dez dioceses do território haitiano. Rezamos juntos na capela da casa e dele recebemos palavras de incentivo para nosso projeto missionário. O interesse por visitar a Representação Pontifícia teve como propósito selar nossa união espiritual com o Papa Francisco, que tem incentivado às dioceses e arquidioceses a se tornarem, cada vez mais, “Igreja em saída” e a olharem, sem medo, para as periferias. Recordemos que, no momento da eleição de Bergoglio para a sede de Pedro, foi um Cardeal brasileiro, o franciscano Dom Cláudio Hummes, que lhe disse ao ouvido que não se esquecesse dos pobres, razão pela qual o eleito decidiu escolher para si o nome do Poverello de Assis.

A última visita deu-se sábado de manhã, quando fomos à base militar brasileira em missão de paz no Haiti. Ficamos cheios de admiração e bons sentimentos patrióticos, pelo que vimos. Fomos muito bem recebidos pelo Comandante da Brabat 26, Coronel Lage, o subcomandante, Coronel Pontes, e o Coronel Vasconcelos, G10. Acompanhou-nos muito atenciosamente o Capelão Militar, 1º Tenente do Exército, Padre Rodrigo César Ferreira, jovem presbítero que leva com brio os seus deveres militares e com exemplar fidelidade sua vida sacerdotal a serviço dos soldados. Ficamos admirados de observar que os nossos militares brasileiros, das três forças, ali não apenas garantem a paz, mas fazem um excelente trabalho social de ajuda à população carente, com várias ações humanitárias, construções e doações, inclusive auxiliando as missões religiosas através de projetos sociais apresentados pelas comunidades.

Na viagem de retorno ao Brasil, depois das fortes experiências missionárias no Haiti, uma cena nos impressionou já no Panamá. Após a Missa que celebramos domingo na linda capela do aeroporto daquela cidade, uma senhora venezuelana nos veio procurar, com visível angústia no rosto, e nos fez um pedido clamoroso: “rezem pelo povo venezuelano que está numa situação de terrível opressão de um governo ditador e violento, causando fome e desespero na população”.

A nossa missão continua. Todos podemos fazer algo pelo próximo.


Dom Gil Antônio Moreira
Arcebispo Metropolitano de Juiz de Fora

Missão Haiti (Parte 2)

foto 0

 

Estou retornando do Haiti, onde estive por uma semana, de 17 a 23 de julho, juntamente com Dom José Eudes, Bispo de Leopoldina, e cinco jovens da associação JMC (Jovens Missionários Continentais) de nossa Arquidiocese.

Visitamos, primeiramente, a Cúria Metropolitana, onde o Chanceler do Arcebispado, Monsenhor Chady, nos recebeu em nome do Arcebispo Guire Poulard, que se encontra fora do País, em tratamento de saúde. Propusemos nosso projeto missionário juiz-forano que foi muito bem acolhido pelo referido Chanceler Metropolitano, comprometendo-se a levá-lo ao Arcebispo e agradecendo nosso interesse de ajudar à Igreja daquele País.

A Cúria está localizada ao lado da Catedral atingida pelo terremoto de 2010. Tivemos a graça de visitá-la, percorrendo todo o espaço entre as ruínas. Causa dor no coração entrar naquele lugar e observar que a edificação religiosa mais bonita de todo o Caribe, segundo o que informaram, hoje está nesta situação desoladora. Porém, ao lado, algo muito emocionante nos consola e edifica: um grande crucifixo de mármore, erguido no jardim, ficou inexplicavelmente intacto no meio de centenas de prédios destruídos pela força do sismo. O fato chama tanta atenção que, desde aquele dia 12 de janeiro de 2010, data do terrível abalo sísmico, há continuamente pessoas ou grupos de pessoas que ali vão rezar, numa demonstração evidente da fé inabalável do povo que, apesar de todo sofrimento, continua cada vez mais forte e esperançoso. Pude trazer para Juiz de Fora dois pequenos pedaços dos escombros daquela Catedral, como relíquia que servirá de sinal da união de nossa Igreja Particular com a Igreja de Porto Príncipe, onde vive o povo mais sofrido das Américas.

Visitamos, em seguida, o local onde Dra. Zilda Arns faleceu, vítima desse desastre natural, quando lá se encontrava para implantar a Pastoral da Criança. Diante do espaço, está a Igreja do Sagrado Coração de Jesus em reconstrução e a gruta de Nossa Senhora de Lourdes, cuja imagem também não foi destruída. Contudo, com o tremor da terra, tal imagem mudou de posição, estando, desde aquele dia, voltada justamente para o local do falecimento de Dra. Zilda. Coincidência? Certamente. Porém, uma coincidência que adquire imenso sentido para quem tem fé e que se sensibiliza com a obra extraordinária daquela médica brasileira em favor das crianças pobres. Recorde-se que a Virgem de Lourdes apareceu para uma jovem menina, Bernadete, de origem muito humilde e lhe fez importantes revelações. Lá está também a imagem da vidente, completando a cena mística daquele local que ficou, para nós brasileiros, inolvidável.

Passamos diante do Palácio do Governo, edifício este também destroçado pelo terremoto, dentro do qual se encontra grande parte do Arquivo Nacional, com muitos documentos, inclusive títulos e escrituras de propriedades. Tudo foi destruído pelo sinistro. Porto Príncipe é hoje uma cidade em reconstrução, mas a duras penas, pois se trata de um povo marcado pela pobreza e pelo sofrimento. Até mesmo o Governo encontra-se em contínua dificuldade, pois grande parte da população não tem a mínima condição de pagar impostos.

Contudo, vimos que o povo é muito bom, muito confiante, muito trabalhador e muito esperanço. As crianças são tão carinhosas que nenhuma inibição lhes impede de vir abraçar de imediato a quem lhes chega com atenção. São de uma pureza encantadora e uma espontaneidade sem par. Isto pudemos verificar em todos os lugares que visitamos, sobretudo nas inúmeras obras que a Igreja ali mantém em favor da infância.

É necessário que o mundo encontre a missão, pois esse se organiza melhor quando prevalece a fraternidade, a justiça e a paz.

 

Dom Gil Antônio Moreira
Arcebispo Metropolitano de Juiz de Fora

 

Arquivos

Tags

  1. Facebook
  2. Twitter
  3. Instagram
  4. Video