Missão Haiti (Parte 4)
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- Segunda, 14 Agosto 2017 10:12
Apesar de tudo, vi muitas coisas boas no Haiti. Vi um povo amoroso com os que lhes dão atenção, muita gente trabalhadora que crê na força do bem e no poder de Deus. Vi muita expressão de fé genuína, gestos de grande amor ao próximo, de alegria no servir. Vi um edificante respeito pelas coisas sagradas, como o cuidado de vestir a melhor roupa, apresentar-se limpo, bem penteado ao ir para as celebrações, sejam na Igreja, sejam ao relento. Tal respeito se vê no silêncio dentro dos templos, na posição de veneração ao entrarem as equipes de celebração no recinto, na preparação dos cantos – às vezes a duas, três ou quatro vozes - nos instrumentos de percussão sem exageros e nem excessos, na delicadeza ao estender as mãos para receber a Sagrada Comunhão, e, por fim, nas danças inocentes após certas celebrações festivas.
Apesar de lixo e esgoto a céu aberto em muitas ruas, não vi muita gente que aparentasse descuido com a higiene do corpo. Apesar do calor de 37º, não vi nenhuma mulher com roupa muito curta, nem de shorts, nem de bermuda, nem com vestido decotado, nem com o ventre descoberto, nem descalça. Não vi nenhum homem de camiseta cavada, nem de bermuda que não fosse bem abaixo dos joelhos, ninguém fumando nas ruas. Um colega me disse que, depois de muito observar, encontrou uma ou outra pessoa que se apresentava com cigarros em público.
Vi muitas obras de caridade e de promoção humana dirigidas por religiosos vindos de várias partes do mundo, vivendo na alegria de servir, se misturando ao povo simples, vivendo com a mesma simplicidade daquela boa gente. Vi radicalidade neste particular, como os jovens da Missão Belém, brasileiros ali presentes desde o terremoto de 2010, que moram em casas semelhantes às dos pobres mais pobres, ou seja, em barracos feitos de material reciclável, cobertos de lona de plástico, dormindo no chão, usando banheiros precários. Move-os a radicalidade do evangelho, a imagem de Cristo que, um dia, disse: “As raposas têm suas tocas e as aves do céu têm seus ninhos, mas o Filho do homem não tem onde repousar a cabeça” (Mt 8,20). Vivem o despojamento total para serem solidários em tudo ao irmão que sofre.
Vi os Frades da “Associação e Fraternidade de São Francisco na Providência de Deus” - obra brasileira nascida em São José do Rio Preto -SP em 1987 - se desdobrarem em serviços, da manhã à noite, para atender, gratuitamente, pessoas desnutridas, gestantes, gente com problemas dentários, aidéticos, doentes de todo o tipo; e faziam isto com tanta naturalidade, satisfação e espírito religioso que não pareciam estar trabalhando, mas apenas cuidando de pessoas de sua família. Vi-os rezando com muita profundidade, celebrando a Eucaristia dentro de um container transformado em capela, desfiando as contas do Rosário com grande devoção, sozinhos ou com jovens ou com o povo em geral, andando pelo pátio da Fraternidade. Vi que vivem em habitações muito simples, como a maioria do povo haitiano vive, acolhem centenas de crianças todos os dias para a nutrição de manhã e à tarde, visitam casas, ensinam como tratar a água para beber, uma vez que toda a água no Haiti é contaminada. Aqueles três franciscanos, sempre revestidos de seu hábito marrom, jovens, com formação universitária, eram para mim a realização bem-acabada da palavra de Cristo: “Tudo o que fizerdes ao menor dos meus irmãos é a mim que estareis fazendo” (Mt 25, 40).
Apesar da desolação de ver a antiga catedral em ruínas resultantes do terremoto de 2010, vi muita gente de nossa religião e de outras, orando, confiantemente, todos os dias e em todas as horas, ao redor do grande crucifixo que ficou intacto no meio de centenas de prédios que foram destruídos por aquele sismo, e vi outras pessoas, em contínua oração, diante da gruta de Nossa Senhora de Lourdes que também não sofreu danos, bem em frente ao local onde Dra. Zilda Arns faleceu.
Vi sinais de organizações não governamentais que estiveram por lá para socorrer a população após o terremoto de 2010 e depois do furacão de 4 de outubro de 2016 e que já foram embora, e outras ONGs que continuam lá dando assistência e amparo aos dizimados.
Vi uma natureza muito bonita, sobretudo nas montanhas, fazendo jus ao nome do País, pois o vocábulo “Haiti” significa, em língua indígena, “altas-montanhas”.
Vi afinal, um grande apelo de Deus em meu coração e nos olhos de todos os que comigo foram em missão, para que façamos o que pudermos, a fim de minimizar o estado de pobreza e más condições de vida dos que lá vivem, pois são nossos irmãos.
Dom Gil Antônio Moreira
Arcebispo Metropolitano de Juiz de Fora